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Mundo | ANA LUÍSA AMARAL

By Publicado novembro 06, 2021

Tecendo o fio que liga o texto à vida, Ana Luísa Amaral convoca-nos para uma paisagem de sons ao compasso dos cheiros, cores que constituem este Mundo: a abelha e a flor em descanso, a mesa e a faca pousada, ou as gentes e as suas interrogações.


GIRASSOL

se pousar nesta folha
um girassol
e o quebrar

o que sobra é o sol
dentro do céu —
parado —

ou o papel
aturdido e em
vertigem?



No "Mundo", o novo livro de Ana Luísa Amaral, "cabe tudo" -- "tanto pode caber uma formiga, quanto uma centopeia, a crueldade do mundo, as desigualdades", explicou a poeta, em entrevista à agência Lusa.

"Acho que no Mundo cabe tudo. (...) [O livro] é uma tentativa, nunca resolvida -- porque, se não, deixaria de escrever --, das minhas interrogações perante o mundo".

A autora questiona "porque é que queremos saber tanto sobre o universo", respondendo imediatamente que se trata de uma busca por "um lugar de onde teremos, eventualmente, vindo".

"E viemos mesmo, porque, como já disse várias vezes, e escrevi, o próprio Shakespeare diz, somos feitos da matéria das estrelas. O cálcio das mãos, o corpo, é o mesmo cálcio que existe numa estrela, num corpo estelar", prossegue.

De volta ao "Mundo" que chega hoje ao mercado livreiro, Ana Luísa Amaral esclarece que, naquelas páginas, "tanto pode caber uma formiga, quanto uma centopeia, a crueldade do mundo, as desigualdades".

Os últimos temas surgem em poemas como "As cores da Servidão", que trata "a questão da servidão, da segregação, discriminação, colonização, quer relativamente às mulheres, quer relativamente aos pobres, quer relativamente ao outro", mas também "Dois Cavalos: Paisagem" ou "Estudo Político".

Ainda que haja também um "Buraco negro: o silêncio do escuro", o questionamento a que a autora se referia no início da entrevista surge mais na relação com o mito.

"Das sagas e das lendas: pequeníssima fábula do contemporâneo" será o exemplo mais evidente disso, e surgiu de uma discussão com Ben, marido da sua tradutora, Margaret Jull Costa, a quem o poema é dedicado.

O ponto de discórdia era se tinham aparecido primeiro os vikings ou primeiro os romanos, como defendia Ben.

"Efetivamente, primeiro vieram os romanos. Foi a partir daqui que escrevi aquilo, e é uma tentativa de desmistificação, daquela ideia que temos das fábulas, das lendas, dos mitos, e da pureza rácica. De uma suposta pureza rácica que não existe".

Mas o poema toca também "a questão de género, as mulheres no doméstico e os homens na guerra, depois também a questão das sexualidades, mesmo no final, todos dando filhos, sendo motivos de literatura, mas se calhar aquele olhando, amando, cobiçando, o homem do lado, e ela a sua aia, no fundo são sexualidades não normativas".

A poeta explica que "a primeira parte do livro foi muito escrita em confinamento, embora nos primeiros seis meses de confinamento não tenha conseguido escrever nada".

"Estava tão assoberbada com o que se passava" e, "ainda por cima, tinha deixado de fumar havia um ano", que o processo se tornou penoso, explica, enquanto se confessa "viciada" em pastilhas de nicotina.

Essa experiência chega no "Intervalo", terceira parte do livro, onde, em "Ode ao Cigarro", passa da terceira para a primeira voz para dizer: "Sei que não posso ter-vos outra vez/ entre os meus lábios como fogo ardente,/ que agora é tempo de cumprir o ar,/ ser de pulmão o mais eternamente que consegue o humano, ou seja, uns anos/ a prolongar um pouco a minha vida."

"Mundo" tem poemas antigos, alguns que não couberam em "Ágora", editado em 2019, e tem outros mais recentes.

Ana Luísa Amaral mostra a varanda onde, "A abelha fez/ a sua entrada triunfal/ neste pequeno pinheiro de varanda morto há já algum tempo,/ colonizado agora/ por uma hera de folhas como trevos/ ínfimas flores lilases", como se lê no seu livro.

Como "A abelha", também "A formiga: peregrinatio" ou "A centopeia: cena quase bíblica" surgem "um bocadinho como as propostas do alto romantismo".

"Estou a pensar no [William] Blake, quando diz to see a world in a grain of sand [ver o mundo num grão de areia], porque, se pusermos um grão de areia num microscópio, tem um mundo lá dentro. (...) É o quotidiano, as coisas pequeníssimas do quotidiano, mas também é o buraco negro".

Esse quotidiano surge, "claro, na sua glória, porque, como dizia Emily Dickinson, para fazer uma pradaria basta um trevo e uma abelha, and reverie -- e a fantasia".

Por outro lado, "não é tanto a glorificação, é o espantamento".

"Acho que o meu livro é uma espécie de glorificação, sim, da vida. Mesmo no desconcerto que é o mundo, mesmo no horror que existe no mundo, mesmo na crueldade que existe no mundo, estar vivo é, como dizia Dickinson, Poder -- com maiúscula".

"Mundo" é editado pela Assírio & Alvim e chega hoje às livrarias.

Nascida em Lisboa, em abril de 1956, a escritora e professora universitária Ana Luísa Amaral, tradutora de romancistas e poetas, vive em Leça da Palmeira desde os 9 anos e tem recebido múltiplas distinções ao longo da carreira, sendo as mais recentes o Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, o galardão espanhol Leteo, da Direção de Ação e Promoção Cultural de Leão, e o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, que reconhece o contributo significativo de uma obra poética para o património cultural deste universo.

Doutorada em Literatura Norte-americana pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde foi professora, Ana Luísa Amaral tem dezenas de títulos de poesia publicados, desde "Minha Senhora de Quê" (1990), além de já ter escrito teatro, ficção e vários livros para a infância.

[LUSA]


ANA LUÍSA AMARAL
A sua obra encontra-se traduzida e publicada em várias línguas e países, tendo obtido numerosas distinções, como o Prémio Literário Correntes d`Escritas, o Premio Letterario Poesia Giuseppe Acerbi e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.

Ana Luísa Amaral ensinou na Faculdade de Letras do Porto e tem um doutoramento sobre Emily Dickinson. É autora de mais de duas dezenas de livros de poesia e livros infantis, e traduziu diversos autores para a nossa língua, como John Updike ou Emily Dickinson. A sua obra encontra-se traduzida e publicada em vários países, tendo obtido diversos prémios, de que destacamos o Prémio Literário Correntes d'Escritas, o Premio Letterario Poesia Giuseppe Acerbi ou o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Em outubro de 2020, foi galardoada com o prémio literário espanhol Leteo. Em novembro do mesmo ano foi-lhe atribuído o Prémio Literário Vergílio Ferreira pela totalidade da sua obra. Em maio de 2021, foi galardoada com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, atribuído pelo Património Nacional Espanhol e pela Universidade de Salamanca, pelo seu contributo para o património cultural do espaço ibero-americano; no mesmo ano, recebeu o Prémio Literário Francisco de Sá de Miranda. Escuro (2014), E Todavia (2018), What’s in a Name (2018) e Ágora (2020) são os seus títulos publicados pela Assírio & Alvim.

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