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Os Exércitos da Noite | Norman Mailer

By Publicado novembro 09, 2021

Norman Mailer, escritor, jornalista, ativista dos direitos humanos e personagem intratável, recorre à terceira pessoa para se referir a si próprio e descrever a sua participação como espetador e ativista calculista na Primeira Marcha sobre o Pentágono, em meados de 1967, levada a cabo por ativistas antiguerra do Vietname. Acreditando ter aprendido a viver no sarcófago da sua imagem, o autor deixa-nos dois relatos dos mesmos acontecimentos em registos diferentes.

O livro divide-se em duas partes, um relato pessoal respondendo à imagem pública que os seus detratores alimentam, esmagador e irónico, e um relato mais jornalístico de quem, como tal, constrói uma torre para se elevar acima da floresta e, dessa forma, perscrutar o horizonte. Para um observador preparado, muito pouco tempo precisa para apreender o que o seu olhar alcança, já a construção da torre consome o seu tempo.Na primeira parte, Norman insiste em descrever o que se passou na conferência em que participou e que começou com uma aventura na casa de banho às escuras, onde terá errado o alvo e urinado o chão, transformando com essa confissão as perdas em ganhos filosóficos. Responde dessa forma, com mais escárnio e sentido de humor, ao artigo publicado na revista Time, onde se dá conta de mais uma aventura psicadélica no decadente Teatro Embassador, referindo que o público presente pagara para ouvir os palestrantes, e descrevendo o estado de embriaguez de Norman. Encerrada a transcrição do artigo da Time, o autor propõe-se contar o que realmente aconteceu. O tom impiedoso como o faz é um registo de quem, levando as coisas muito a sério, não se leva a si próprio tão a sério, nem sobrevaloriza a sua participação na iniciativa. Contudo, considera ser seu dever, quase em salvação extrema da iniciativa, fazer-se prender pela polícia que protege o Pentágono, o que conseguiu com alguma destreza física.Os preparativos da marcha, as diversas negociações, o ambiente sofisticado em que alguns dos protagonistas se movem, criam um contraste inultrapassável com a realidade da maioria dos jovens que participaram na marcha, marcando o divórcio entre a América que detém o poder e a restante população. Resumindo o que se passa na alta categoria social, com a frase: um serão sem uma senhora de má fama na sala era como uma companhia de ópera sem uma grande voz. Em relação ao debate político que se trava nesses ambientes, populados por humanistas científicos, não hesita em classificá-lo como elucubrações académicas tão estéreis quanto uma discussão entre engenheiros. Obrigado a corresponder à prevalecente lenda da sua má educação, para não magoar a sua anfitriã, Norman vê-se obrigado a uma atitude ofensiva – requebros de disposição, como o próprio define -, considerando ser sua obrigação entregar-se ao palco com o máximo de energia, cultivando a rejeição como o último vício saboroso que um aristocrata ainda pode ter.A ironia, o sentido de observação, a lucidez corrosiva e o distanciamento que coloca em relação a si próprio, faz da escrita de Norman Mailer uma referência do seu tempo e um retrato impiedoso de uma América em efervescência, essa gamela de porco do Paraíso. Retratando sem piedade a conspiração ativa em curso na preparação da Marcha, para ver quem no momento certo seria chamado a ocupar o palco dos acontecimentos e por que ordem falaria aos manifestantes. Uma escrita brilhante e um livro demolidor de consciências formatadas.Para um guerreiro, um general presunçoso, um ex-candidato político, um enfant terrible velhote e combatente do mundo literário, sábio pai de seis filhos, intelectual radical, filósofo existencial, autor trabalhador, campeão da obscenidade, marido de quatro doces e combativas esposas, amável frequentador de bares, e muito exagerado lutador de ruas, dador de festas, insultador de anfitriãs, tinha na pantalha neste primeiro documentário um toque fatal, os últimos restos da única personalidade que ele achava absolutamente insuportável – a de simpático rapaz judeu de Brooklyn. (Norman Mailer nas suas próprias palavras).

António Ganhão

ACRÍTICO - Leituras Dispersas

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